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Maria












Sou Maria, tenho 83 anos.  Faço aniversário hoje,acredita? Ah, foi ontem, é mesmo. Bom que minha filha tá aqui que ela vai me ajudando a lembrar da minha história. A velhice faz isso com a gente, as coisas vão apagando, alagando, ficam bem borradinhas. .

Minha filha, eu tive oito filhos e três morreram. Dois dos meus filhos morreram de quebrante. É, isso mesmo. De tanto o povo olhar, curiar, maldizer, ficaram molinhos e morreram. .

Memória? Vishe, deixa eu olhar pro céu pra eu pensar um pouco. Eu lembro muito bem da minha infância, deixa eu te contar que eu sempre gostei de brincar sozinha. Eu fazia uns foguinhos e brincava de casinha debaixo das moitas. Tinha a panela, o fogaréu, a comida de brincadeira. Quando eu me dava conta o pai chegava para ver se eu estava bem. Lembro do rosto dele até hoje. .

Os meus sentidos estão melhores, minha filha. Já tive depressão, eu tinha medo de comer e morrer. Já escapei de um acidente de carro, a gente ia pro Camocim e uma voz dizia pra eu pular do carro. Eu pulei e fui arrastada. Fiquei toda ralada, machucada. .

Mas agora estou ótima, já passou esse momento ruim. Agora eu estou bem feliz. Minha vida da um livro ou um jornal, sabia? Eu nunca aprendi a ler. Eu ficava um dia na escola e outro no roçado. Nesse furdunço todo um dia cheguei pro pai e disse que eu não aguentava essa vida de roça e escola. Como eu precisava trabalhar eu deixei a escola. .

Não sei ler nadinha, mas sei fazer muitas outras coisas. Comecei a trabalhar com 10 anos, sou de uma cidade pra lá de Granja chamava Parazin. Vim pra Sobral depois da morte do pai, vim trabalhar como doméstica. 
Moro há mais de 50 anos aqui na rua da palha, já vi muita coisa, muita dor e muita festa. .

Casei mas meu marido já faleceu. Vi ele pela primeira vez na igreja da sé, tão bonito, paqueramos lá na igreja e depois ele galanteador me pegou. Sinto saudade dele, às vezes grande outras não. Eu namorei muito, gostei muito de viver. Ele não foi meu primeiro namorado. Amei muito. Ainda bem, acho eu pude aproveitar bem a mocidade. .

Diana 

Sou Diana,  a mais nova de uma família de cinco irmãos. Tenho 35 anos, dois filhos e 16 anos de casada. 
A rua da palha é meu lar desde sempre, nasci aqui. Sou fruto do amor de Isabel e Raimundo, através dessa paixão dos meus pais herdei um amor imenso por esse lugar. .

A minha história está profundamente ligada com a história do meu pai. Infelizmente, ele já se foi. Ainda dói muito, não consigo falar disso sem chorar, sem lembrar dos momentos que passei com ele. .

Quando ele adoeceu eu fui a filha que pude me dedicar para cuidar dele integralmente. Eu mudei a minha vida inteira, sai do emprego, quase não conseguia estar com meu esposo, com minha filha, me dediquei a cuidar do pai inteiramente. .

Ele confiava muito em mim, sabia que eu falava com os médicos, organizava a medicação, que eu brigava quando fosse preciso, que eu não ia deixar ninguém cuidar dele pela metade. Isso trouxe uma conexão muito forte entre a gente. Eu virei confidente, filha, amiga, enfermeira. .

No dia anterior da morte dele aconteceu um fato curioso. Eu quase não saía de perto dele mas nessa manhã precisei sair para ir na rua da frente resolver umas coisas. De repente vi uma ambulância passando. Senti algo estranho, algo me dizia que era ele. Não deu outra, quando cheguei ele já tinha ido pro hospital às pressas. .

Cheguei no hospital desesperada, lembro de ter entrado na sala gritando. Mesmo entubado ele escutou a minha voz. O hospital que eu já tinha estado muitas vezes agora estava mais frio, diferente, algo me avisava. Quando ele tossia eu tossia junto, queria desesperadamente tossir por ele. O diagnóstico era de fibrose pulmonar, era muito difícil ele respirar direito. Se pudesse eu respirava por ele. .

No outro dia ele se foi. Até hoje eu não recordo o que eu senti exatamente. Acho que eu não me permiti chorar por causa da mãe, eu não queria que ela sofresse mais do que já estava sofrendo. Eu chorava escondida, eu não podia chorar na frente dela. Eu tinha que ter força para dar força a mãe. 

Hoje já se passou um tempo e ainda assim eu lembro de cada detalhe. Lembro dele sentado na cadeira de balanço e eu fazendo xuquinha no cabelo dele. Ah, que dureza é perder quem a gente ama. O pai era um homem incrível, um bom pai, um marido dedicado. Ele dizia que família era seu maior tesouro. Eu cresci tendo total noção do quanto eu era amada. 

Sinto uma saudade absurda, tenho vontade de conversar, de cuidar dele, de dar bronca. Queria que ele tivesse conhecido meu Raimundo, que nasceu ano passado, e que eu dei o nome dele pra ver se alma deixa um pouco de sangrar. 

Sabe que eu sinto? Eu ainda não me perdoei de não ter levado ele ao hospital no último dia. Eu estava com ele em tudo e logo naquele dia... na verdade eu nunca aceitei isso no coração.

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